sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Deixando de escutar para apenas ouvir

"Hear" é quando você ouve algo sem intenção. "Listen" é quando é intencional. You hear the noise coming from the street, you listen to music. Em português temos ouvir e escutar, mas eu acho que não há uma diferença tão explícita entre um e outro em nossa língua. Ou há? Enfim. Um professor raramente consegue apenas "hear" os alunos. Um professor "listens to" alunos. Não tem como. Você está lá e seus ouvidos estão ligados. Em tudo. Nas fofoquinhas faladas em sussurros. Nas reclamações. Nas frases repetidas na hora do drilling. Em uma turma de 20 alunos eu consigo identificar quem está falando de fato as repetições e quem está apenas mexendo os lábios. Meus alunos querem morrer comigo. Assim como querem morrer quando sussurram uma reclamação e eu respondo em voz alta, pra todo mundo ouvir.

Esse poderia ser considerado um talento. Eu vejo isso como um fardo. Quem de fato escuta não consegue ignorar as bobagens que ouve no dia-a-dia. Quem de fato escuta não consegue praticar o "entra por um ouvido e sai pelo outro". Se eu apenas ouvisse e me atentasse em fazer o que devo fazer, que é corrigir erros falados em inglês, eu seria mais feliz. Eu não absorveria as asneiras que me falam e não carregaria o peso delas depois. Asneiras pesam, sabiam?

Aluno repetente que vem tirar satisfação porque diz que eu cobrei na prova matéria que não dei em aula. Mentira, eu só cobro em prova o que foi ensinado em aula. O energúmeno me mandou recadinho escrito! Entrei na sala-de-aula feito um tufão. "Ô bonitão, posso saber que droga de recadinho do coração foi esse que você mandou?". Falo assim mesmo com o pessoal do ensino médio, senão eles nem olham na minha cara. Fui obrigada a escutar que eu coloquei palavras que não ensinei ainda. Palavras no texto da compreensão de texto. Tive que segurar o riso. "Amiguinho, compreensão de texto é isso mesmo. É encontrar uma palavra desconhecida e entendê-la pelo contexto". Escuto: "mané contexto, cara? Vem cobrar coisa que não ensinou?". Argumentei que um idioma só é idioma se tiver contexto. Contexto é tudo, vamos amar o contexto. Ele virou a cara pra mim e ficou resmungando. É lógico que eu escutei. É lógico que eu fiquei puta da vida.

Estou doente desde quarta-feira, ontem dei aulas o dia todo. Mas estava com tanta dor de garganta que em um momento de uma das aulas eu relaxei. Deixei os alunos conversarem em português mesmo, 5 minutos não matariam ninguém. Alunos na faixa dos 12 anos falando sobre planos para o futuro e o quanto deve ser difícil passar na faculdade. E que pra passar na USP só quem é muito nerd e estuda demais. Interrompi e contei que eu passei sem estudar nada porque era boa aluna e tenho boa memória. Ele ficaram maravilhados. Um aluno me fala: "teacher, mas não estou entendendo uma coisa. Você estudou. E você é inteligente. E sabe inglês. Porque você é professora??? Por que não é bem-sucedida?". Ô tristeza. Ele perguntou sem maldade. Eu expliquei a ele que na minha área, dar aulas naquela escola era uma maneira de ser bem-sucedida. Ele rebateu: "mas ser bem-sucedido não pode ser ter que aturar aluno mal-educado e você atura isso todas as aulas". Sábio, não? Encerrei a conversa e voltamos à aula. Mas estou até agora pensando nisso. E por quê? Porque não sei ouvir. Tivesse eu só ouvido, teria encarado isso como uma conversa besta de alunos adolescentes. E só.

Ontem saí da escola e fui direto pro hospital. Amigdalite. Garganta bastante inflamada, toda cagada mesmo. Liguei para a minha gerente para avisá-la que eu não poderia dar aula hoje. A nêga passou o dia de ontem inteiro vendo como estava difícil para mim por causa da dor de garganta. Ela VIU. E deu-se ao direito de ter chilique comigo ao telefone, horrorizada porque eu tinha atestado para um dia. Como assim eu não daria aula, ai meu deus, e você ME AVISA AGORA? Poxa, eu fiquei horas no hospital, só soube do atestado agora. Tive que escutar grosseria e tive que escutar um "PELO MENOS você mande por email EXATAMENTE o que deve ser dado pra essa turma. É o mínimo que você deve fazer. A gente te ajuda mas você tem que nos ajudar um pouco".

Eu escutei, claro.

E estou remoendo essa merda até agora. Quero sambar na mesa dessa insensível. Quero sair gritando pela escola "filha da putaaaaaaaaaa, estou aqui só porque estou cumprindo a minha palavra, porque não quis te deixar na mão, e você me fala UMA BOBAGEM DESSA? Enfia esse trabalho no orifício que melhor lhe convir e me mande embora!". Mas é claro que segunda-feira ela estará um amor comigo, porque ela sempre percebe quando faz merda e depois vira uma seda.

Nem 4 meses num lugar e já quero deixar de lado um dos meus talentos de vida, que é saber escutar. Cansei, só quero ouvir. Preferencialmente só "blablabla whiskas sachê". Só.

7 comentários:

Pati disse...

Também penso que seria muito melhor se conseguíssemos somente ouvir... principalmente no trabalho.Tem dias que escuto cada coisa, que penso que se eu fosse surda, não sofria tanto!
Infelizmente, também tenho o talento de escutar.
Adoro seu blog!

S. W disse...

Camila Deus abençoe a calma que você teve. Eu fodo muito a minha vida porque eu deixo sair (falo) o que eu estou pensando no momento e lógico me arrependo depois, nao é nada esperto ser assim, mas enfim, saber aquele chichezao que só temos uma boca e dois ouvidos faz tanto sentindo...

beijos e melhoras

Paula Baltazar disse...

Camila, sei como é isso, também não sei apenas ouvir, o que sempre me trouxe muitas neuroses... mas eu queria falar mesmo sobre a conversa que teve com seu aluno, sobre ser ou não ser bem-sucedida. Acredite, depois de 15 anos trabalhando no mundo corporativo, hoje acredito que quem faz o que gosta é a verdadeira pessoa bem-sucedida.
E olha, já vi muita gente com um salário de 5 dígitos ouvindo o mesmo que você ouviu da sua chefe, algumas vezes até pior...
Mas o importante é que dezembro tá chegando! ;-)

Isadora disse...

Concordo plenamente com você: a vida seria bem mais fácil se a gente conseguisse deixar entrar por um ouvido e sair pelo outro. Eu não consigo. Nem pessoalmente e nem "virtualmente": com coisas que vejo por aí e me tiram do sério.
Também já fui professora e, ao contrário de você, desisti. Por isso sei o que se passa contigo e, principalmente, saiba que eu te admiro absurdamente. Porque, menina, eu estava a ponto de matar um adolescente. Eu também ouvia, e já respondi muito. O dia que ouvi "estou pagando e você tem que me dar a resposta, sua vaca!" eu larguei mão.
É muito triste que essa seja a verdade :(

Jan disse...

Nossa, Camis, a coisa ta feia mesmo... Cada vez mais difícil se fazer entender... Tenho alunos adultos e mega-arrogantes que sempre quando podem ao invés de me ouvir, me escutam... Mas tem sempre os que fazem valer a pena. Dezembro tá perto. Se cuida!
Beijos.
PS - E eu estava EXATAMENTE pensando em fazer um blog de MIMIMI, porque eu ando extra-rabugenta... ahahahahahaha

Juno disse...

Hum! De acordo com a linguagem do corpo do ponto de vista metafisico....dor de garganta e etc= voce está engolindo muito sapo!

e voce tá certa.....ou ouve e deixa pra lá ou rebate.....se ouvir e guardar a garganta fica estourada.....

Jussara disse...

Tão triste saber que adolescentes de 12 anos acham que ser professora é ser mal-sucedida (sendo filha de uma, me dói mais ainda). Mas se acham isso provavelmente ouviram em casa. E aluno chamar professora de "cara"? Acho isso o fim. Sei que não é "nada", que muitos recebem xingamentos, mas não me conformo com esse tipo de atitude.

Quando li sobre sua garganta inflamada logo pensei que devia estar relacionada aos fatos que vc vem enfrentando. Coisas que vc vê mas que não pode falar, etc.

Tô acompanhando a saga, e nem sei o que dizer. Só sei que é muito ruim trabalhar insatisfeita. Mas tente não dar ouvidos mesmo. E que venha a contagem regressiva. Tomara que vc tenha umas férias bem legais e que possa ir para um ótimo lugar.