domingo, 27 de abril de 2008

Malabares no farol

Eu, assim como a maioria dos paulistanos apressados, estressados e empertigados, acho um saco quando, em todo e qualquer farol, aparece alguém jogando bolinhas ou bastões para o alto na tentativa de te convencer de aquele é um talento que mereça ser remunerado. Ainda que eu nunca tenha presenciado nenhum ato violento vindo dessas pessoas ao não receberem nenhum trocado, deve encher o saco receber um "não" de todo e qualquer motorista. Mas eles estão sempre sorrindo. Forçadamente, mas sorrindo. Geralmente eles continuam com o sorriso forçado e partem para um outro veículo. Malabares pro alto e pra baixo, sorriso forçado, nenhum trocado, sorriso que sai do rosto. Até o próximo sinal vermelho.

Eu estava no ônibus, como sempre observando as pessoas, quando vi no cruzamento da Berrini com a Roberto Marinho um rosto conhecido. Um sorriso que eu conheço de anos atrás, e que antes não tinha alguns dos dentes. Agora, reconstruído, ele estava ali, forçado como o de todos os outros, enquanto malabares subiam e desciam com toda a destreza. Minha vontade foi de sair do ônibus e tirá-la dali, foi de falar pra todos os carros que não davam nenhum dinheiro a ela que ela tinha quatro filhos extremamente educados e que eu já havia cuidado de três deles. Quis dizer que ela era honesta, que estava sempre tentando fazer o melhor pros filhos e que, apesar da pobreza extrema, os filhos iam para a escola todos os dias com o uniforme limpo e a lição-de-casa feita. Doeu em mim. O farol abriu. Eu não fiz nada dentro da minha revolta em ver uma conhecida com malabares no farol.

Durante uns três anos eu fui voluntária numa creche que atendia crianças da favela e da classe média do Brooklin e região. Esse bairro é considerado de classe média pra sei lá, classe média alta. Mas a favela sempre esteve ali, desde que eu me entendo por gente. E era assim que todos naquela creche eram tratados, independente da origem: as pessoas ali eram realmente pessoas. Tinha o menino criado pelo pai caminhoneiro. A mãe fugiu com outro cara. Eles moravam numa casinha na favela, com um quarto só. O pai levava as namoradas lá quando achava que o filho dormia. Como conseqüência, tínhamos praticamente uma aula de sexo com bonecas. O menino não podia ver Barbies e Kens que colocava um em cima do outro e nos dizia: "meu pai namora assim, ó". Tinha a menina que, saiu do barraco pra ir morar numa casinha lá onde Judas deu o cu em troca de um copo d'água, chegou toda contente dizendo que o banheiro dela era de verdade e tinha até privada. Não era fácil manter a naturalidade.

Eu quase adotei uma menininha de dois anos, a Dominique. Subnutrida, a mãe viciada em drogas, foi presa por roubo e a menina e o irmão eram cuidados por vizinhos. De um dia pro outro Dominique encasquetou comigo e andava atrás de mim pela creche toda. Se eu sentava no chão pra brincar com as crianças ela sentava no meu colo e dormia. E às vezes chorava. Meu coração quase se quebrava. Eu comecei a entrar na favela pra levar comida pra ela nos finais-de-semana. Parei porque um dos donos da favela veio atrás de im um dia e eu fiquei com medo. Soube depois que uma das vizinhas conseguiu adotar a menina e o irmão.

E aí tinha Luíza e seus quatro filhos. Ela tinha um emprego de doméstica até que um dia surtou e teve que ir prum hospital psiquiátrico. A filha mais velha assumiu a casa e a creche meio que assumiu as outras três crianças. Impressionava a educação de todos eles. E como a mãe fazia questão que fossem pra escola. Ela nunca admitiu que os filhos pedissem nada. O máximo que fazia era fazer pães, logo depois de ter saído do hospital, e fazer com que as duas adolescentes vendessem na vizinhança. Mas só depois de voltar da escola. E tinham que voltar pra fazer lição de casa. Há um ano mais ou menos encontrei os dois meninos mais novos, já pré-adolescentes, no ônibus. Lembraram de mim e me abraçaram e eu me senti velha. Eu cuidei de um deles ainda bebê...

É comum a gente dizer que esse pessoal dos faróis ganha dinheiro em cima de crianças ou que eles estão ali porque não querem trabalhar. E há, mesmo, muitos casos assim. Mas há também gente como a Luiza, que não consegue emprego porque já esteve internada. E que tenta ganhar um troco pra terminar de criar os filhos. Eu acho a Luiza uma das mulheres mais admiráveis que conheci até hoje. De mais fibra. E que é MÃE e PAI com maiúscula mesmo. E ela estava lá no farol. Não consegui até agora parar de pensar nisso. Eu digo sempre que a vida é injusta, taí um grande exemplo.

5 comentários:

Anônimo disse...

Você quase me fez chorar aqui. Mas foi bom. Eu morro de implicância com malabares e ouros pedintes de farol. Só que pé julgar as pessoas é um erro que cometemos o tempo inteiro, às vezes sem nem perceber. Eu espero não comete-lo mas daqui pra frente.

Juliana Eliezer (Joo) disse...

Eu tive uma tentativa de voluntariado mal-interpretada também, depois que comprei 300 brinquedos e fui distribuir numa favela. Daí pra frente só trabalhei como voluntária em proteção de animais, porque deu medo mesmo.

Anônimo disse...

Esse texto me emocionou muito. De verdade. Eu sempre passo por aqui e nunca comento, mas hoje eu tive que falar alguma coisa. O mundo é muito injusto mesmo.

Ariett disse...

Lindo texto. Em todos os sentidos.

Ariett disse...

Lindo texto. Em todos os sentidos.